O segredo do candelabro - Parte 1

Qual o segredo se esconde por trás das histórias desta peça tão rara que por vários anos nunca foi retirado do teto daquele modesto sobrado? São fatos que se mantiveram adormecidos até a morte desta respeitável senhora que zelou com muito amor os filhos, netos e bisnetos.

O segredo do candelabro   -    Parte 1
O segredo do candelabro   -    Parte 1

Ninguém queria aquele candelabro pendurado no teto da sala. Com vários braços, total de oito longas ramificações, diziam que parecia uma grande aranha peluda. Nem mesmo a proprietária do sobrado, situado em uma rua tranquila no bairro mais tradicional da cidade, aprovava a permanência do objeto. Os filhos, sobrinhos insistiam pra contratar um eletricista para retirá-lo e colocar outro mais usual. Quando a família se reunia, surgiam sempre comentários relacionados ao candelabro.

—Misericórdia, é horrível.

—Parece uma grande suçuarana gigante.

—Não. Parece uma aranha peluda.

—A sensação é que vai cair sobre nossas cabeças. E se cair, a queda é brusca. Mata.

A senhora Ernestina, herdeira do imóvel, sempre relutante, explicava a todos, inclusive as visitas, que no leito de morte, o único pedido que sua mãe, a falecida, dona Esmeralda, exigiu antes de dar o último suspiro, era não desfazer do candelabro. Lembra como se fosse ontem, a velha moribunda, em sua alcova, lastimosa, as lágrimas escorrendo em bicas naquele rosto enrugado pelo tempo, 90 anos. Apertou com força o seu braço, deixando grandes marcas avermelhadas, murmurando:

—Jura para mim, Nené. Você jura que nunca vai arrancar e jogar fora este candelabro. Herança de família. Pertenceu a minha avó, quando o pai dela construiu este sobradinho. Juras para mim, minha filha.

Ernestina franzia a testa, os olhos inchados, aos prantos queria compreender os motivos de tal exigência. A velha moribunda com tantas dores pelo corpo suava frio, espumava a boca parecia que uma mão invisível apertava o seu pescoço flácido.  No aposento cheio de quinquilharias em todos os lados, amontoados em cima de poltronas, cômoda, guarda roupa, em uma mesinha debaixo da janela, onde se via uma imagem de uma santa. Quadros da família inteira pendurados em uma parede, além daqueles com simples paisagens. Muitos deles deveriam ter sido atirados no quartinho, lá nos fundos da casa, onde se guardava coisas velhas, sem uso, ou doados para alguma pessoa que tivesse interesse. Entretanto a falecida tinha a mania de acumular muitos objetos, os quais consideravam de grande valia inestimável. Os filhos e netos a aconselhava sempre quando ia visitá-la, a desfazer de coisas inúteis.  O cheiro de poeira e mofo causava náuseas.

Adolfo, o filho mais novo de dona Ernestina, sempre que visitava a avó, se arrependia. Passava mal e era preciso correr as pressas ao médico. Sofria de asma, nem mesmo a bombinha que trazia na algibeira da calça para quando necessária resolvia.  Depois de medicado, resmungava para todos ouvirem:

—Arrependimento de visitar vô Esmeralda. Ela não tem jeito, aquelas bugigangas dela vai acabar me matando. Arre.

Os irmãos não discordavam dele, mas por um lado também não desaprovava a avó. Coitada, muito idosa, nos tempos dela as pessoas tinham estas manias de guardar recordações da família. Deixa-a um dia quando não estiver entre eles, dá-se um jeito. Faziam um nome do pai, afirmando aos céus que não desejavam a partida da avó.  No dia de sua morte, apenas Ernestina estava ao seu lado, segurando sua mão trêmula, gélida, a morte parecia ao lado na espreita.  Os filhos na sala, consternados, mas não tanto como a mãe, de olho gordo na herança da avó, Adolfo fazia planos em reformar a casa, retirar toda a mobília antiga e trocar pelas mais modernas. Trocar a pintura, e principalmente as cortinas grandes e horríveis nas janelas. E para todos ouvirem, dizia sem escrúpulos, observando cada objeto.

—Será que vó Esmeralda tem algum dinheiro no banco? Joias, ouro, diamantes.

Os irmãos repudiavam a sua atitude. Judith sua irmã mais nova, que sempre defendia a avó, e para ser mais claro, entre todos os netos a amava com coração, respeitosa, carinhosa, o advertia. Com a sua morte seria a única, dos netos, a se esconder em seu mundo de angústias e saudades.

—Como é sem coração Adolfo, não respeita o momento de dor da família. Pensa somente em dinheiro. Sua ganância ainda vai ser a sua ruína.

Ele retrucava, ignorando os conselhos da irmã, sentindo-se o mais coerente, pensando com a razão e não com a emoção.

—Vai ser nada Judith. Ninguém vive sem dinheiro. 

E acrescenta.

—Nossa mãe será a herdeira. Como bem sabe tudo já foi transferido para o nome dela. O tio Oswaldo não quer nada e muito menos tia Eugênia que mora no exterior e não vem nos visitar. Ainda mais para o velório.

Adolfo é o contrário dos irmãos, enquanto Judith é um doce de formosura, sempre amável, Rodrigo o mais velho, muito cordial, ele sempre carrancudo e mal humorado. Briga com todos, e se considera o predileto da mãe. Entretanto, dona Ernestina, vive a reclamar que o filho parece ter sido trocado da maternidade. Sua atitude egoísta, manipuladora preocupa. Principalmente acerca do seu futuro. Às escondidas, sozinha em sua alcova, chora pedindo em suas orações, para que Jesus o perdoe e cuide de seus caminhos. Vai sofrer muito nesta vida caso não emendar-se. O falecido pai, Dr. Afonso, que hoje descansa em paz, após sofrer um infarto há dois anos, era um homem digno e honesto. Nunca fez mal a qualquer pessoa. Exerceu a advocacia com muita honestidade e caráter.  E até hoje sofre pela perda do marido, seu braço direito, que segurava as pontas na casa e todos o respeitava. Agora ela, ninguém respeita, com exceção de Judith e Rodrigo, são uns anjos, os filhos que pediu a Deus. Adolfo, infelizmente é a ovelha negra da família. 

Segurando as mãos da mãe, acariciava o seu rosto sofrido, cansado e insistente balbucia qualquer palavra.

—Não se preocupe mãezinha, não irei mexer naquele lustre, candelabro, não sei como se chama. Não vou mexer.

E a velha Esmeralda, sorriu com o olhar, os olhos quase se fechando, compreendeu que o seu desejo seria respeitado. Chamou a filha para achegar mais perto, porque queria dizer mais alguma coisa. Ernestina atendendo o seu pedido, aproximou mais perto do rosto da mãe, com os ouvidos atentos.

—Você poderá tirar o candelabro apenas quando precisar de...

Não terminou a frase, e como em um sopro pendeu a cabeça de lado e se foi. A filha com a cabeça no seu peito desabou em lágrimas intensas, e seu grito atraiu os filhos que estavam na sala. Correram todos ao quarto e depararam com o corpo inerte da avó, sobre a cama. A mãe apenas murmurou.

—Ela se foi, sua avó, se foi.

Todos se abraçaram e mudos permaneceram por um longo tempo. Entre eles Judith transbordava em lágrimas. Um soluço comprido e convulso. A cena real do sofrimento alheio.

Adolfo quieto no seu canto não ousava falar nada, o pretexto seria os comentários maldosos a ferir sua família que sofria.  A empregada da casa, Isaura uma senhora magra, cabelos com mechas grisalhas que caiam nos ombros, aparência de 50 e poucos anos, trouxe uma jarra de suco sabor maracujá, com o propósito de acalmar os parentes da falecida.

Rodrigo, o mais expediente que os outros, tomou as rédeas da situação e saiu para resolver as questões de cartório e funeral.  O doutor Omar, médico da família foi informado e solicitado a casa para atestar o óbito. Em poucos minutos estacionava na rua próxima, o seu Ford Maverick Azul escuro, de 1970, com duas listras pretas no capô que deixava o veículo mais charmoso.

Naquela época, quem possuía um automóvel desses era milionário. Todo solícito, entrou esbaforido na varanda, e abraçou Ernestina que não cessava os soluços enxugando os olhos com um lencinho bordado com linhas de tricô. Na tentativa de confortá-la, sem êxito, dizia categórico:

—Calma Ernestina, sua mãe descansou... Estimava tanto a senhora Esmeralda. Mas, os anos passam, temos que aceitar a realidade. Ninguém vai ficar para a semente. Acredite que fez o melhor que pôde, sendo zelosa, amando-a e respeitando.

E completava...

—Pode ter certeza, neste momento se encontra ao lado de vosso pai. Sorrindo.

A estas palavras a mulher desabava em um soluço cada vez mais alterado. Adolfo, o único que parecia não dar-se ao desfrute aos queixumes, folheava tranquilo uma revista de moda feminina estirado em uma poltrona.

A irmã indignada esbravejava, acusava—o de insensível. Isaura tampava os ouvidos com as mãos e pé ante pé seguia para a cozinha murmurando:

—Vixi Maria. Família de loucos.

No fim da tarde, todos os trâmites legais estavam resolvidos. O velório acontecia no próprio sobradinho na Rua Dores do Indaiá, 30, como era de costume nos tempos de outrora. Em uma pequena capela nos fundos da propriedade, entre roseiras e alguns pés de limão e mexerica. O cheiro das folhas do fruto azedo estava impregnado no ar. No enorme terreiro aonde amigos, parentes e vizinhos vieram se despedir da falecida se encontram espalhados bancos de madeiras e uma mesa com garrafas de cafés, jarras de sucos e bandejas com biscoitos, bolos e outros quitutes.

Enquanto alguns se fartavam outros enchiam bolsos das calças e paletós. A maioria dos presentes estavam com roupas escuras. As mulheres cobriam parte do rosto com um véu preto, os homens apenas com chapéus de couros, calças e paletós escuros.

Alguns nem isso foram para filar as guloseimas.

À noite, ficaram apenas parentes e amigos próximos. Uma luz pálida de velas e lâmpadas iluminavam todo o espaço. O burburinho das conversas relembravam casos antigos de dona Esmeralda em vida.

—Bons tempos aqueles.

—Como era bondosa.

—Era um prazer imensurável a sua companhia.

—Saudades vai deixar. Muitas Saudades.

—Que o senhor Jesus a abrace e conforte seus familiares.

Estas e outras referências repercutiam de boca em boca, e nos grupos pequenos de ocupantes que com os olhos quase fechando chegavam a um cochilo rápido e assustado. Pela manhã, ás 08 horas, o pároco da Igreja São José, fez as últimas orações, e a urna funerária foi fechada e seguiram para o Cemitério do Bonfim.  

O corpo da falecida foi sepultado no mausoléu da família. Os aplausos de agradecimentos, fato primordial demonstrou o quanto foi estimada e querida. De volta a casa, a família enlutada permaneceu sozinha com suas confabulações.

 

Conto retirado do Livro  : " O Moinho e outros Contos" UICLAP/ 1ªEdição/2023

Gonçalves.Ronaldo