Homeschooling ou Educação Domiciliar e os Direitos das Crianças e Adolescentes
Na última semana, vimos ser aprovado na Câmara dos Deputados o PL 3179/2012 que se refere à possibilidade das famílias educarem crianças e adolescentes no ambiente doméstico (agora o PL segue para votação no Senado Federal). Conhecida como homescooling ou, em português, educação domiciliar, a prática é considerada um retrocesso grave para especialistas da área da educação.
A educação domiciliar nasce do desejo das famílias pela eficiência pedagógica, de permanência de valores e de segurança física e é reforçado pela disposição atual de fontes de informação baseadas no avanço e no domínio das novas tecnologias. Sabemos que o modelo escolar enfrenta problemas estruturais e que muitas vezes deixa de atender, na sua plenitude, as necessidades dos alunos, mas será que a solução é realmente abandonar a escola? Não estaria o Estado delegando às famílias um papel constitucional que lhe cabe? Não seria dever do Estado proporcionar uma escola inclusiva, que fosse capaz de atender seus alunos e alunas nas suas especificidades? Não me parece uma equação fácil de resolver, pois depende de um esforço coletivo e, principalmente, de um desejo do Estado de prover educação de qualidade aos seus cidadãos.
A escola moderna constitui, antes de tudo, uma instância de socialização, transmitindo formas de agir, de sentir e de compreender o mundo. É ainda a instituição de letramento e formação dos indivíduos da nação. Há, portanto, uma pedagogia de Estado que passa pela escola. Em seu interior, crianças e jovens são preparados para ocupar a esfera pública. A cultura escolar é permeada por práticas que representam um microcosmos da vida social e, desta forma, preparam seus alunos e alunas para o convívio em sociedade, desenvolvendo valores e saberes comunitários.
A rotina escolar possibilita ainda o convívio entre os iguais. Há cumplicidade entre crianças da mesma idade, há também rivalidades, desavenças, afeições e desafetos. Tudo isso é educativo, sendo um contínuo aprendizado relacionado aos conflitos inerentes à sociabilidade humana. A escola desempenha três funções claras na vida dos estudantes, a primeira refere-se ao papel de representar uma instância intermediária entre a família e a vida social, preparando a criança/adolescente para o seu ingresso no mundo público. Além disso, é papel da escola ensinar os códigos da cultura escrita e promover um aprendizado de valores e de códigos de comportamento considerados adequados e condizentes com o que a sociedade entende ser importante. A escola, então, supõe um aprendizado de ética e de civilidade.
Ao serem educadas apenas em casa, crianças e jovens não serão suficientemente preparados para ingressar no mundo público e não serão confrontados com a diversidade social. A família constitui uma totalidade relativamente homogênea, a escola lida necessariamente com a pluralidade. Deste modo, me parece fundamental o convívio escolar para aprender a reconhecer, a respeitar e, por vezes, a enfrentar aquilo que é diferente. Além disso, não me soa plausível que a família dê conta de abarcar, no espaço doméstico, todas as matérias escolares. Como os pais trabalhariam todas as disciplinas que na escola são abordadas por professores especialistas? Ou, ainda, como teriam possibilidade de contratar um professor particular para cada disciplina? Neste segundo caso especificamente me parece que este modelo seria destinado a uma parcela ínfima da população, que teria recursos financeiros suficientes para arcar com estes custos.
A Campanha Nacional pelo Direito à Educação também se posicionou contrária a aprovação e publicou uma carta em que afirma que a decisão é um grande equívoco e abre caminho para colocar milhões de crianças e adolescentes em risco, além de representar uma desvalorização da escola e dos profissionais da educação.
“A defesa da educação domiciliar é sintoma de uma sociedade cada vez mais individualista que desacredita nas construções coletivas como a educação. Dessa forma, a educação domiciliar não afeta somente o direito à educação e, muito menos, somente a situação daquelas crianças e jovens que estarão naquele modelo educacional, mas afeta toda a sociedade e a democracia.”
“Defender a educação domiciliar é negar que a educação está diretamente relacionada com a formação de uma sociedade plural e mais inclusiva, que aceita as diferenças e a diversidade de concepções.”
A decisão de autorizar o ensino domiciliar, caso se concretize, precisa ser acompanhada de forma criteriosa por mecanismos de averiguação sobre o que se passa na família e sobre como essas crianças e jovens irão aprender e ser socializadas. É importante lembrar que os pais são responsáveis pelos seus filhos e filhas, mas não são proprietários destes indivíduos. É preciso que a escola possa se interpor como instância intermediária entre a família e a vida social. Além disso, professores foram formados para ensinar e o fazem às vistas de todos no ambiente escolar, estando, portanto, mais aptos a ensinar de maneira serena, sem deixar que paixões e crendices os acometam. A quem crianças que estudam em casa recorrerão quando eventualmente forem constrangidas moral e fisicamente pelos próprios pais que ensinam?
Portanto, a possibilidade de autorização para a educação domiciliar deve ser vista com cautela, talvez como uma saída para casos específicos, como o de crianças e jovens que possuem condições de saúde que os impeçam de frequentar a escola e cujas famílias tenham condições estruturais de prover um ensino de qualidade aos seus filhos/as, e não como uma “opção” ao ensino escolar. O que poderia inclusive abrir uma brecha para que a escola se negue a matricular alunos que julgue inaptos ao sistema educacional formal, como no caso dos alunos com deficiência. Desta forma, a educação domiciliar não afeta somente o direito à educação, e, muito menos, somente a situação daquelas crianças e jovens que estarão naquele modelo educacional, mas afeta toda a sociedade e a democracia.
Leia na íntegra a carta da Campanha Nacional pelo Direito à Educação